VIAGEM AO PANTANAL,
REGIÃO DO RIO PIQUIRI.
Saída no dia 25-09-2003.
CAPÍTULO II.
O pôr do sol no Pantanal é a
marca registrada das belezas desta imensa planície.
A onça, o maior e o mais lindo de
nossos animais é um símbolo da riqueza da fauna
pantaneira.
Tirei esta fotografia no Corixo dos Tucunarés, Rio
Piquiri, onde havia um belíssimo casal de onças
pintadas, o verdadeiro canguçu do Pantanal. A visão
deste casal de felinos simbolizou a segunda parte de nossa
pescaria e grande viagem. Estas imagens representam, de forma
resumida, toda esta grande área do Pantanal que, por
ainda serem regiões de difícil acesso, são
as mais preservadas que conheço.
MEDITANDO NA MORRARIA DO AMOLAR.
Ancoramos, para passar a noite, em um maravilhoso pé
de Ipê. O sol lentamente foi desaparecendo atrás
das montanhas da Serra; o Pajé impoluto parece ter
apreciado o sol poente, pois lançou sua sombra pelo
espaço infinito, dando vida a toda serraria do Amolar.
Aos poucos o ar foi se tornando carregado de energia e um
vento sem direção certa começou a rodopiar
na região. As amarras do Shekinah se estiravam ora
para estibordo, ora para bombordo. Uma ciranda de folhas girava
pelo espaço ao redor da embarcação. A
água do Rio Paraguai começou a formar pequenas
e sincronizadas ondas, que se assemelhavam a carneirinhos
brancos deslizando ordenadamente pela superfície escura
da água do anoitecer.
Pouco depois as ondas se uniram formando imensas vagas que
corriam cadenciadas pela extensão do majestoso rio.
Vindo de sudeste, um enorme CB (cúmulo nimbos ) contorcia-se
e ameaçava toda a região.
Seu caminhar era de uns 30Km/h, mas os ventos, no sentido
horário de sua posição, deviam atingir
mais de 90km/h. Pela sua trajetória deveria passar
um pouco ao sul de nosso ancoradouro, dirigindo seu centro
diretamente para o Morro do Pajé.
Em alguns momentos, o CB se iluminava todo em virtude dos
relâmpagos internos, revelando nitidamente sua ciclópica
forma de bigorna, que ocupava mais de dois terços do
espaço visível do conturbado horizonte.
A feliz fotografia mostra o exato momento em que um raio explodiu
direto na serraria do Amolar.
O barulho do trovão, audível após alguns
segundos à sua explosão, indicava sua queda
a uns quinze quilômetros de onde estávamos.
É incrível a potência e a energia acumulada
dentro de uma nuvem tipo CB!
Ela somente perde em energia potencial acumulada para um furacão,
que seria a soma de milhares de cúmulos nimbos.
Por exemplo, os furacões que atingem os USA pela Flórida,
via Golfo do México, sempre nascerem como CBs na costa
ocidental da África do Norte, de onde alcançam
a Corrente do Golfo, e vão ganhando força até
se transformarem em monstros de destruição e
morte por onde passam.
Felizmente a chuva não caiu onde estávamos.
O CB derramou suas diluvianas águas lá pelos
lados da Bolívia.
Apesar desse monumental evento meteriológico, a noite4
chegou muito calma.
Jantamos e ficamos conversando até às 21:00h,
quando os companheiros foram dormir.
Eu, aproveitando a costumeira ausência de sono e a providencial
trégua dos mosquitos,
resolvi subir na cobertura do barco para meditar.
Meditar é submeter-se a um exame interior; é
pensar e analisar bem tudo em nossa mente, relacionando cada
dado com o espaço e o tempo que está nos envolvendo
ou nos tenha nos envolvido num particular momento.
A região da Morraria e das grandes baías do
Amolar são ambientes próprios para isso, principalmente
depois de a tempestade ter levado para longe toda energia
acumulada na atmosfera. As densas nuvens, varridas do céu,
deram lugar a um firmamento derramado de estrelas. Parecia
um milagre! Concentrei-me na grandiosidade desse firmamento,
enquanto uma ligeira brisa trazia harmoniosos sons da noite
pantaneira. Comecei a integrar-me à natureza ao meu
redor.
Havia momentos em que me parecia ouvir a água do rio
Paraguai correndo pelo seu leito, roçando os barrancos
e contornando as pedras. Em outros, tinha a sensação
de ouvir o cálido vento agitando a vegetação
da serraria do Amolar, como um suave arfar da mãe natureza.
Ou seria a respiração do Pajé, como acreditávamos
índios? E como duvidar, se naquele momento eu tinha
a mesma mítica impressão?
À medida que a noite avançava, bem lá
no oriente, a lua, com sua acariciante claridade, começou
dominar o firmamento. O tapete de estrelas foi sendo substituído
pelo domínio prateado da lua. Tornam-se lógicas,
então, as ardentes adorações dos povos
primitivos a ela...Isolados em noites cujo limite é
o infinito, a ânsia do saber impulsionando suas mentes
e paixões, como não imaginar ser uma deusa do
universo, aquele corpo celeste refulgindo no espaço
sideral, ainda mais que o grande deus sol havia se retirado?
Todos os povos sabem a influência de nosso satélite
sobre a Terra: nas marés; na seiva das plantas, nos
homens... Em tudo enfim! Olhando fixamente para a lua, percebi
a grandiosidade do espaço à minha volta, tudo
parecia criar vida.
A água corrente do rio tornou-se uma esteira prateada,
em contraste com as sombras e a escuridão da noite.
A lua, ao passar por uma nuvem de alto cúmulo, parecia
deslizar pelo firmamento. É pura ilusão de ótica,
pois a lua estava é estática em sua órbita
ao redor da Terra, e o que realmente se movia eram as nuvens,
em direção Este – oeste, como se fossem ainda
resquícios do grande cumulo nimbos, que havia, horas
antes, varrido o Pantanal.
Era 1:00h. O espetáculo na Serra do Amolar era tão
extraordinário que a imaginação começou
a ocupar o espaço da vista.
Vi alguns meteoros cruzarem o espaço.
Mas nenhuma imagem como essa.
Essa eu criei dentro de minha mente, ávido de ver alguma
coisa de extraordinário no firmamento.
Tudo, tudo era especial. A felicidade que estava sentindo
era indescritível.
Em primeiro lugar, pelos companheiros que estavam comigo na
aventura: o Primo Augusto, companheiro de tantas jornadas;
o leal Machadinho e seu filho Patrick, amigos de tantos anos...Essa
é a felicidade de um homem: estar em harmonia com sigo
mesmo e com o universo que o cerca.
O sono felizmente veio. Meu boné já estava molhado
pelo orvalho que caía e o frio penetrava pela blusa.
Ao entrar no barco procurei não incomodar nem o Gustão
e o Roberto, que dormiam perto da porta de entrada, nem o
Machado, que com seu filho, haviam se acomodado nos beliches
do corredor.
O nascer do dia no Amolar foi, como sempre
o é no Pantanal, muito lindo e peculiar: uma manhã
clara e cheia de esperança para prosseguirmos nossa
aventura.
Dormi tarde, e só acordei depois que o Chicão
já havia colocado o Shekinah em movimento, assim tive
que sair rapidinho do quarto para registrar essas imagens
inesquecíveis do lugar maravilhoso onde pernoitamos.
Este grupo de pescaria era formado, felizmente, por homens
supereducados; isso contagiou de forma muito positiva toda
a tripulação, o que, diga-se de passagem, tem
sido fundamental paro o sucesso de nossas pescarias no Shekinah.
COMPRA DE ISCAS. No porto havia muita gente: homens, mulheres
e principalmente crianças. Não posso fazer a
menor idéia como vivem as pessoas dessas comunidades
ribeirinhas: sem conforto, pouca alimentação
e milhões de mosquitos que invadem suas desprotegidas
casas todas as tardes. A única energia é obtida
através do querosene e da lenha.
Acredito que o que os mantêm em contato com o mundo
seja o velho e bom radinho à pilha. Por sinal, até
nos pediram duas pilhas para trocar no equipamento, pois as
deles estavam fracas.
Na primeira foto vemos a casa dos vendedores
de iscas. Este porto era muito movimentado, porém com
a criação do Parque Ecológico do Pantanal,
algumas regiões foram transformadas em reservas destinadas
ao criadouro de peixes, onde a pesca é, obviamente,
proibida. A região do Parque Ecológico é
muito vasta: inicia-se pouco acima deste antigo porto, exatamente
onde o Rio São Lourenço deságua no Rio
Paraguai. Compreende ainda duas das maiores baías que
existem no Pantanal, a Baía Gaiva e a Baía Uberaba.
Até o ano de 2001 o destino dos grandes barcos de Corumbá
era esta região; agora eles ancoram nas regiões
de Coqueiro, Chané ou Baía Vermelha.
Havia caranguejos à vontade para vender, e como o Machado
e Patrick são grandes pescadores de caranhas, piavuçus
e outros, foram ver os caranguejos no “tanque”, para selecionarem
os melhores.
Pelas fotos pode se ver a extensão do barranco do rio
e perceber o quanto ele está vazio. Esperamos que as
chuvas venham abundantes, pois são as cheias do Pantanal
que propiciam a revitalização da fauna e flora.
Na primeira foto vemos o Machadinho, com
sua elegância característica, acendendo seu perfumado
cachimbo, qual um autêntico lorde inglês, como
sempre diz o Gustão.
A segunda fotografia é um acampamento de ribeirinhos,
antigos pescadores da região, que por ora o Chico não
sabe como estão vivendo, já que a pesca foi
proibida e a venda de iscas esteja muito fraca. Acreditamos
que eles estejam levando uma vida sacrificada, sendo obrigados,
algumas vezes, a transgredirem as leis para garantir a sobrevivência.
Estamos, neste ponto, a uns 10Km dentro do
Rio São Lourenço, “águas acima”, como
diz o Chicão.
Nesta imensidão incrível de águas, um
pescador solitário cruza o grande São Lourenço.
Nosso barco passou por ele, que permaneceu impassível
como uma estátua, indiferente a tudo que acontecia.
Estava, aparentemente, com uma linhada de mão, pescando
em lugar proibido, talvez para assegurar sua sobrevivência,
o que ninguém poderia recriminar, penso eu.
De qualquer forma, singrava as águas do grande rio
em sua minúscula piroga com a certeza de que aquele
lugar pertencia a ele e não a nós.
Este é o famoso Hotel da Mesbla. Quando
as Lojas da Mesbla “eram o que eram”, construíram este
maravilhoso hotel às margens do Rio São Lourenço.
Era um grande empreendimento, pelo lugar onde ele foi construído
e pelo o luxo com que os hóspedes eram atendidos. Embora
não seja visível na foto era uma construção
bem grande. Atrás do morro, na segunda fotografia,
tem um aeródromo que servia para a chegada das pessoas
ao hotel. Em 1980 aterrissei nesta pista, com o Embraer 710C,
Corisco. Tudo era feito com uma mordomia extraordinária!
Quando saímos da compra das iscas eram 6:00h (Boca
do São Lourenço); ao passarmos pelo Hotel da
Mesbla eram 8:15h. Logo após o hotel avistamos um grande
cardume de curimbatás subindo o rio, enquanto os dourados,
pintados e jacarés festejavam, regalando-se com o farto
banquete.
Estes são aspectos do Rio São
Lourenço. Ele tem um pouco menos que a metade da largura
do Rio Paraguai, mas com características próprias:
corre mais dentro da “caixa” e seus meandros são mais
pronunciados, como poderá ser visto no “Track” do GPS.
Suas águas são profundas, 6 a 8m, e sua correnteza
é um pouco menor que a do rio Paraguai, cerca de 1
a 2km/h. É uma região muito selvagem,
praticamente não se encontra ninguém navegando
em suas águas. A água estava limpa, muito boa
para pescar.
Este é o Posto Fiscal do CARCARÁ.
É um lugar muito importante no Rio São Lourenço.
É aí, a região chamada Reserva do Carcará
que a Polícia Florestal tem sua sede, que por sinal,
é muito bem cuidada e dotada de ótimas embarcações.
Temos esperança que essa instituição
possa realmente salvar está maravilhosa área
do Pantanal.
Ao passarmos neste ponto, exatamente 1 hora após o
hotel da Mesbla, já tínhamos navegado mais de
12Km. A subida do rio foi bem lenta, já que o comandante
queria poupar combustível, ao mesmo tempo que enfrentávamos
um vento de nordeste, que em muitos momentos nos atingia de
proa, retardando nossa marcha. De Corumbá até
o ponto onde estávamos, já haviam sido percorridos
uns 230Km.
Tudo estava mudando: a vegetação, as barrancas
do rio, a cor e aspecto da água, as aves...É
incrível a variedade das micro-regiões existentes
no Pantanal.
Viagem longa, tempo de repousar. Na primeira
fotografia, o Patrick e o Chico, com o Padilha no timão.
Na segunda, o Patrick veio tirar a fotografia. Continuamos
subindo o Rio São Lourenço. Teoricamente, eu
estou no estado de Mato Grosso e o Chico no Estado do Mato
Grosso do Sul. Estamos navegando exatamente em cima da divisa
destes dois estados.
Quantas voltas tem o rio, quantas ilhas, quantos corixos,
quantas bocas...Impossível contar! Procurar animais
em suas margens é um belo passatempo. Debaixo de uma
vetusta mangueira, em um porto abandonado, o Chico mostrou-me
uma enorme sucuri, que pelos nossos cálculos deveria
ter uns 8m de comprimento e um diâmetro semelhante ao
de um animal que tivesse engolido uma capivara das grandes.
Chico, em grande parte do tempo, ia de binóculo procurando
bichos nas margens. O homem queria mesmo era ver uma onça
pintada. Eu devo ter pilotado umas 6 horas. Durante todo esse
tempo o Chicão procurava, via e me mostrava muitas
aves e alguns animais, como um bando de ariranhas que assediavam
um cardume de curimbatás. Mas a onça que ele
queria ver ainda não foi neste dia...
Vimos centenas de aracuãs soltando seus onomatopéicos
gritos:”quero casá, pra matá”, típicos
do período de acasalamento. Acredito que vivam eternamente
nesse período pois a farra entre eles é sempre
barulhenta e movimentada. Os aracuãs são aves
grandes, de rabo longo, muito semelhantes ao jacu e à
jacutinga.
Jacutinga: Designação comum às aves galiformes,
comuns no centro oeste e sudeste do Brasil. A jacutinga se
diferencia das demais espécies por ter a região
entre o bico e os olhos, azul; a parte nua da garganta vermelha,
plumagem preta com brilho azul, e no alto da cabeça
barbas externas das coberteiras das asas e orlas das penas
do peito, brancas. Ocorre nas matas virgens, é arborícola,
raramente descendo ao chão; alimenta-se de toda sorte
de pequenos frutos e bagas, não desprezando outros
alimentos.
Um dos pássaros mais numerosos por estes lados são
os maguaris, que é um pernalta imponente de tons acinzentados.
Enquanto os barcos vão passando eles voam rente à
água exibindo toda sua elegância.
O Maguari é uma ave comum também nas costas
marítimas do Brasil. Dorso cinzento-escuro; cabeça,
crista, estria no meio da garganta, meio do peito e da barriga,
e rêmiges, pretos; o restante do abdome é branco.
Os pássaros mais abundantes em todo o Pantanal são
os Biguás, mas por incrível que pareça
não os vimos na região por onde navegamos.
No Rio São Lourenço já existem muitas
praias, e nelas sempre havia inúmeros jacarés
e pelo menos um casal do pássaro símbolo do
pantanal, o Tuiuiú. Esse pássaro podeter quase
3m de envergadura e 1,20m (ou mais) de altura, quando pousado
na areia.
Tem um enorme e potente bico, pescoço preto realçado
por uma volumosa papada e penas brancas por todo restante
do corpo.
Durante toda a subida pelo rio São Lourenço,
já percorridos 180km de rio, o Chico não havia
conseguido ver nenhuma onça.
Por volta de 13:00h uma fome terrível atacou a todos,
aguçada pelo tentador aroma de alho refogado que temperava
o feijão. Os acepipes, então, entraram em cena:
queijinhos, salaminhos e torradinhas, regadas a um bom uísque
e cervejas, acalmaram o apetite e alegraram o ambiente.
Como é bom recordar esses felizes momentos de nossas
vidas, em que deixamos o tempo passar e nos entregamos à
alegria quase infantil da aventura. A expectativa da Maior
Pescaria de Todos os Tempos, nos motivava o tempo todo...
Esta é a região chamada de
BILICA. Não fazemos a mínima idéia do
porquê desse nome. Mas a partir deste ponto, a mata
galeria foi ficando muito mais densa, e o Chico não
largava o binóculo na ânsia de ver uma onça.
O dia foi se encobrindo por nuvens de altos estratos. O curso
da água representava uma artéria fluvial interminável.
Nas poucas retonas que existiam, parecia que o Shekinah não
saía do lugar. Na primeira foto, a água pela
direita some no horizonte distante; se não fossem os
camalotes descendo o rio, pareceria estarmos parados na grande
planície do Pantanal.
Segunda fotografia: na popa do barco a visão era completamente
outra! Os 380HP dos motores pareciam triturar á água
do rio, fazendo ondas que agitavam as margens e invadiam as
matas. Parecia que estávamos a grande velocidade, rasgando
o Pantanal.
Doce ilusão!
Esta é uma fotografia muito importante:
em primeiro lugar porque registra nossa fome leonina, pois
já eram 12:00hs.Em segundo lugar porque mostra o cozinheiro
Roberto aprendendo a fazer um frango à moda do Patrick,
que, aliás, ficou ótimo. O “menino”, além
de grande companheiro, é profundo conhecedor da arte
da culinária.
Bem, nesse dia nosso almoço foi realmente especial,
como disse o Machadinho. Patrick disse que na próxima
pescaria ele vai fazer as compras, pois faltaram muitas coisas
para que ele pudesse realizar pratos usando todo seu potencial.
Muito bom, bom mesmo!
O Rio São Lourenço apresenta,
como já havia dito, características próprias
e peculiares. Nesses longos trajetos, não pude deixar
de imaginar os Bandeirantes Paulistas, que no século
XVI subiram estas águas no varejão, ou melhor,
na zinga (vara comprida, usada na propulsão de embarcações).
Que audácia tinham estes homens!
Ou seria a mais refinada cobiça pelo ouro que deveria
haver em todo este território?
Toda esta planície era habitada pelos temíveis
índios Guatós.
Conta à história que, no século XVII,
na região de Cuiabá, era comum achar-se pepitas
de ouro nas vielas do povoado e nos caminhos, após
as grandes chuvaradas.
Eu não duvido muito, pois no ano de 2000 estive fazendo
uma grande trilha, de Poconé até o Porto Jofre,
e em Poconé eles ainda fazem grandes escavações
procurando e achando ouro. Em termos de ocupação
do espaço para a instalação do homem,
o Pantanal começou a ser povoado no início de
1800. Oficialmente, esta região foi chamada de Paiaguás
a partir de 1825. Esta região, chamada de Paiaguás,
de forma documentada foi em 1825.
Li o relato de um fazendeiro que saiu de São Paulo
em comitiva pelos rios: Tietê, Sucuriu, Coxim, Paraguai,
São Lourenço. Foi uma aventura de 2 anos até
se instalar nesta região, não mais em busca
de ouro, mas com o objetivo de criar o gado e se estabelecer
com a família.
Esta região tem muitos portos. Este
talvez seja o Porto Alegre ou do Bananal. São lugares
onde os barcos cargueiros deixam as encomendas dos fazendeiros
da região. Todos os produtos que se pode imaginar são
trazidos pelos barcos de negociantes. Todos dependem do rio
como se fosse uma artéria oxigenando todo um tecido.
Pelo traçado do GPS, que está no fim deste relato,
pode-se ver todas as numerosas curvas do rio São Lourenço
até o Rio Piquiri, com o nome dos principais portos
pelos quais passamos
.
Este é um barco típico de transporte
da região. Nesse ponto, ele já está vazio
descendo, o São Lourenço com destino a Corumbá.
Deve estar levando uma grande lista de pedidos, desde carretéis
de linhas até peças de tratores. Segundo contam,
vários donos destes barcos chegaram a ficar muito ricos.
São grandes negociantes, trocam frangos e peixes por
outras mercadorias, fazendo o chamado escambo para todas as
pessoas das fazendas da região.
Levam também passageiros para vários destinos,
tanto rio a cima como rio a baixo. O barco está bem
afundado na água, conseqüentemente deve estar
muito pesado, cheio de peixes e sabe-se lá o que mais...
Buscando Comida
Víveres: Em um determinado momento
percebemos que a viagem estava ficando mais longa do que havíamos
imaginado e fazendo um “balanço” junto com o cozinheiro,
concluímos que a comida estocada não seria suficiente.
O Gustão se apavorou. Adiantando-se, o Chico sugeriu:
--Estamos a uns 30 Km do Porto Jofre, onde tem um belo hotel.
Confirmei, pois já havia me hospedado lá. Certa
ocasião percorri, juntamente com o Marcelo, Zé
Fernando e o Maluf, toda a Transpantaneira de Poconé
até o Porto Jofre. Fui de quadriciclo e os demais,
com suas potentes motos.
Realmente o Jofre é um belo Porto e tem um bom hotel,
tem até pista para pequenas aeronaves, piscina, sauna
e um bom restaurante.
O amigo Machado, gentil como sempre, prontificou-se ir comprar
mais víveres. Na primeira fotografia o Padilha está
abastecendo o Motor Suzuki, para, adiantando a viagem, ir
até o hotel fazer a compra. O tempo estava frio e chuvoso,
o que não intimidou os companheiros. Por sinal, foram
muito felizes na empreitada.
Nas imediações do Porto Jofre
passamos por um lugar muito ajeitado, não tenho certeza
se chama Alegre, mas é muito bonito e muito bem cuidado.
Um dia terei que refazer essa grande viagem para marcar melhor
os pontos. Nesta, tivemos muitas alterações
meteorológicas, ventos, cúmulos nimbos, chuvas,
o que nos prendeu a atenção, retardando a viagem
e desviando-nos completamente de nossas marcações
do GPS.
Passamos por muitas fazendas, Pousada e Portos:
Negrinho, Sepultura, Autuam até chegar ao Porto Jofre.
Viagem longa sempre tem imprevisto: Estávamos a 2 horas
do Porto Jofre, quando o tempo “fechou” feio realmente. O
Machado e Padilha já haviam voltado com os víveres.
Segundo o Chico não seria indicado navegar naquelas
condições, ainda mais que não chegaríamos
mesmo ao Piquiri antes do anoitecer. Assim, resolvemos aportar
o Shekinah.
Enquanto a chuva não vinha, o Augusto e Machado resolveram
ir pescar um pouco. Eu e Patrick resistimos por alguns minutos
mas logo em seguida fomos também. Entramos em um braço
de corixo, mais abrigado do vento, e ainda deu para fazer
uma pescaria razoável, pois o Patrick e o Augusto pegaram
algumas cacharas, que propiciaram um belo jantar de peixes
frescos.
Uma pescaria de improviso, com um CB rondando
toda a região não é brincadeira! Mas
pescaria é assim mesmo: quando menos se espera, lança-se
a uma aventura, e em meio ao vento e à chuva surgem
os peixes. Como sempre diz o viajado Gustão: --Gente,
o que pega peixe é anzol na água “...
E não que ele tem razão? Eu nunca vi um anzol
fora da água pegar um peixe!...
O fruto de nossa pescaria animou-nos um pouco.
Numa das fotos vemos o companheiro Machado saboreando uma
bela refeição preparada com os peixes pegos
antes que a chuvarada desabasse do negro céu pantaneiro.
PRIMEIRA VIAGEM AO PORTO JOFRE, POR TERRA (Recordando). Quando
Juscelino Kubitschek foi presidente do Brasil (de 1956 a 1961),
inaugurou a TRANSPANTANEIRA , grande rodovia que ligaria Cuiabá
a Corumbá, proporcionando a integração
do Pantanal. Nessa áurea fase de expansão nacional,
Brasília em abril de 1959 foi inaugurada e estradas
como a Belém – Brasília e a transpantaneira
foram abertas. Desta última o que restou foram trechos
ao norte (Poconé ao Porto Jofre) e ao sul (de Porto
Manga até 30Km além do Esquinão). Tudo
o mais perdeu-se no tempo ou foi destruído pelas cheias.
Conta à história que, na região da Nhecolândia,
os fazendeiros ali instalados precisaram dinamitar, às
pressas, grande parte do aterro da estrada a fim de dar vazão
às enchentes, pois as pontes construídas não
eram suficientemente adequadas para a passagem das águas.
Com esta e outras intercorrências, mais de 350Km da
estrada ao sul do Porto Jofre desapareceram...Foi muito triste.
O trecho que vai de Poconé a Porto Jofre resistiu,
mas em condições tão precárias
que acabou se transformando em desafio para os trilheiros
do Brasil. Depois de ler uma reportagem sobre uns “jeepeiros”
que por lá passaram, decidi realizar a mesma façanha.
Assim, em 2001, convoquei alguns amigos e partimos: eu com
um ATV (All Terrain Vehicle), um quadriciclo traçado,
próprio para essas aventuras e eles com suas motos.
Na primeira foto estamos chegando em uma
pousada, no início da Transpantaneira. Havíamos
viajado 1380Km de Ribeirão Preto até esse ponto,
levando as motos e quadriciclo (ATV), em duas Silverados.
Foi uma árdua viagem, pois as estradas de MT são
lastimáveis. Na segunda fotografia estão os
4 trilheiros: Eu, Marcelo, José Fernando e Maluf. Antes
de sairmos para a viagem nos preparamos muito, pois sabíamos
que às dificuldades seriam grandes, somente não
contávamos com a quantidade de chuva que pegaríamos
pelo caminho. Desta pousada até o Porto Jofre tínhamos
230Km de estrada semidestruída e 154 pontes quase intransponíveis.
INÍCIO DA TRANSPANTANEIRA: A primeira
fotografia é o posto do IBAMA, onde se recebe algumas
orientações sobre a situação da
estrada, pois são 180Kim com 154 pontes, algumas sem
a menor condição de tráfego. Na segunda
foto vê-se uma ponte considerada razoável, uma
vez que as outras dispõem de apenas uma tábua
para a passagem. Isto me prejudicou muito, pois o ATV não
tem bitola normal, tive que providenciar tábuas extras
em muitas ocasiões.Atravessar essas pontes sabendo
que, sob elas, jacarés e piranhas aguardavam um inusitado
“lanche” estimulava ao máximo nossa adrenalina, ainda
mais debaixo dos aguaceiros que enfrentamos.
Gastamos quase um dia inteiro para percorrer os 180Km. Pousamos
no Porto Jofre e retornamos no outro dia, após uma
noite cheia de pesadelos, pois me preocupava lembrar das pontes
que teria que passar na volta.
Para os jovens de moto, era “pau na máquina e chute
nos cachorros”. Bem, essa viagem será uma outra historia
a ser contada.
Esta é uma vista aérea do Porto
Jofre que mostra a pista de pouso, uma grande baía
atrás do hotel e as construções. Neste
dia havia duas aeronaves pequenas Embraer 710C, o Corisco,
no aeródromo.
SEGUNDA VIAGEM AO PORTO
JOFRE, POR ÁGUA.
Finalmente avistamos o famoso Porto Jofre.
Após uma longa curva do rio, lá estava ele,
perdido à distância, no meio das nuvens sombrias,
que em baixos estratos cobriam o horizonte. Tudo ficou mais
leve, estávamos a poucas horas do Rio Piquiri. Francamente,
eu gosto de navegar, mas desta vez os informantes, Chico e
Padilha, erraram em todas as previsões e isso foi uma
grande lição para mim. Nas próximas excursões,
como sempre, cuidarei da logística da viagem. Na realidade,
o tempo tem, para os pirangueiros e para nós, dimensões
muito diferentes: para eles quanto mais demorar, melhor.
Ancorado no Porto Jofre estava este belo
navio, que por sinal, nos cedeu 200l de óleo diesel
para voltarmos a Corumbá. Na segunda foto vemos o Gustão
e Machadinho de costas para a rampa do Hotel do Porto Jofre.
Neste momento eram, exatamente, 11:40h. Tínhamos navegado
350km, com 35h de viagem, a uma média de 10km\h, mais
ainda estávamos a 35km do rio Piquiri. Era o tempo
de almoçar, arranjar a tralha e sair para pescar.
Eu e Gustão saboreando o prazer da
chegada ao Porto Jofre. Contei para eles que já havia
trilhado toda a região do Jofre com o quadriciclo e
que já havia descido aquela rampa para lavar o quadriciclo
(ATV), que chegou ali praticamente como uma pelota de barro.
Mas os companheiros não acreditaram muito na nossa
epopéia por terra até esse fim de mundo. Pretendo,
se houver oportunidade, mostrar a fita de VT desta viagem
a todos eles.
A alguns quilômetros acima do Porto Jofre, na margem
direita do rio, há uma pequena e típica vila
de pescadores com os quais conversei muito quando ali estive.
Suas histórias são bastante peculiares, mas
a insatisfação com o desaparecimento dos peixes
é comum a todos eles.
É muito importante esta construção abandonada,
à margem esquerda rio São Lourenço: aí
era o Porto Jofre original, ou seja, aí era o término
da Transpantaneira, vinda do sul do Pantanal. As balsas pegavam
as cargas nesse ponto, atravessavam o rio e se dirigiam às
fazendas da região ou descarregavam em outros caminhões
com destino a Poconé e Cuiabá. Com o desaparecimento
da estrada, não havia motivo para que o Porto na margem
esquerda do rio existisse, assim, foi abandonado.
CHEGAMOS AO PIQUIRI.
Bem na direção da proa do Shekinah, finalmente,
dá para ver a famosa Barra ou desembocadura do Rio
Piquiri. É realmente emocionante chegarmos ao destino,
depois de 3 dias de viagem. Melhor dizendo, quase ao destino,
pois ainda subimos o Rio Piquiri uns 3 Km para ancorar o barco.
O Rio São Lourenço continua para o norte do
estado de Mato Grosso e segundo eu entendo passa a se chamar
Cuiabá mais de 100Km águas acima, após
chegar à região do Tarigara.
A divisa dos dois Estados, MT e MS, continua sendo o rio Piquiri.
A fotografia a seguir do satélite (EMBRAPA) dá
para ver, com muito boa vontade essas divisas e estes pontos.
A parte negra da fotografia é o estado
do Mato Grosso do Sul, o verde é o Mato Grosso.
Os pontos todos onde ficamos, navegamos, pescamos e vimos
as onças estão assinalados na imagem do satélite.
Esclarecendo:
1. O primeiro mostra a exata localização do
Porto Jofre; ampliado, permite ver distintamente o hotel,
as casas e a pequena pista de pouso do aeródromo.
2. A seta indica o local exato onde o Rio Piquiri desemboca
no Rio São Lourenço.
Segundo muitos moradores da região e mesmo eu em alguns
mapas, é aí que o Rio São Lourenço
passa se chamar Rio Cuiabá. Esta questão é
velha para mim.
E, modéstia à parte, já cheguei a uma
conclusão: o Rio Cuiabá perde mesmo o nome a
uns 150km acima, quando atinge o delta do São Lourenço,
região esta chamada de Perigara.
Pela complexidade hidrográfica da região é
previsível, que as confusões sejam inevitáveis.
3. Este é o lugar onde aportamos o Barco Shekinah,
depois de 38 horas de viagem e 380km de rios percorridos,
representando um considerável esforço. O que
mais admirei em toda esta aventura foi o espírito aventureiro
de todos os companheiros. O maior “gentleman” do grupo, eleito
por unanimidade, foi o ilustre primo Gustão.
O ponto das onças também está assinalado
na fotografia do satélite (seta amarela).
Finalmente começamos
pescar.
Eu e o Gustão finalmente embarcados.
Partimos para a pescaria dos famosos tucunarés do Piquiri.
A emoção, no início de uma pescaria,
é muito grande, e neste lugar era ainda muito maior,
pois se tratava de uma área muito selvagem, longe de
tudo e de todos. Na segunda fotografia vemos o heróico
Shekinah. Depois de deslocar suas 13ton de Corumbá
até aquele ponto, eu tinha um pouco de receio que pudesse
ocorrer algum dano mecânico, mas felizmente tudo correu
muito bem.
Gustão usou óculos e um chapéu feito
nos USA, e que é a última moda para pescaria
de tucunarés.
A saída para esta pescaria foi cheia de expectativa.
Primeiramente, porque há muitos anos ouvíamos
falar nos tucunarés que haviam invadido o lado selvagem
do baixo Piquiri.
Segundo, porque nosso piloteiro, o Chico, não conhecia
o local para onde iríamos, a não ser por informações.
Como na primeira fase da grande viagem as informações
do Chico eram todas equivocadas, em relação
a esta segunda etapa da pescaria, as perspectivas eram um
pouco sombrias.
Pergunto-me se não seriam estas dúvidas, incertezas
e buscas, a essência de uma aventura verdadeira.
A canoa, com motor Suzuki de 30HP, arrancou, levamos mais
20 litros de gasolina de reserva, pois as distâncias
por lá não são pequenas. Como já
havia dito, a morfologia hidrográfica do Piquiri é
própria, trata-se de um rio bem singular. Observar
suas diferenças prendeu-me a atenção
nos 33Km que navegamos até o corixo dos Tucunarés.
A fotografia desse barranco conta por si
só à história geológica do Pantanal.
Ela foi tirada a 15km águas acima do Rio Piquiri. Nos
400Km de rio que navegamos este foi o primeiro e único
corte de barranco que achei em todo percurso. O que dizer
de cada uma destas camadas sedimentares, que começaram
a se depositar em tempos imemoráveis da história
da planície pantaneira? São histórias
de períodos de chuvas e enchentes extraordinárias,
de secas terríveis que quase transformaram a região
em um deserto. São bilhões de partículas
de siltes, que após longas caminhadas dos planaltos
circunvizinhos, ali vieram se depositar. Entre os depósitos
pode-se ver, em detalhe, pequenos crustáceos fósseis,
que correspondem aos tipos de zôo-plâncton existentes
em cada período geológico recente da formação
do pantanal. O período deste barranco conta uma história
de 10.000 a 30.000 anos. Segundo a Petrobrás, que já
pesquisou petróleo no Pantanal, a camada sedimentar
metamórfica, que é à base do solo do
pantanal, está em algumas regiões afloradas,
como a Serra do Maracaju e em outras.
No pantanal baixo, está a mais ou menos 200m de profundidade,
em conseqüência dos movimentos tectônicos
e à erosão muito atuante em toda a área.
Acabei de comprar um livro de Abi S´aber sobre a geologia
do Brasil.Ele fala bastante do Nordeste, dos mangues, da Floresta
Atlântica e Amazônica, mas infelizmente, nenhuma
palavra sobre o Pantanal, Continuarei pesquisando e aceitando
ensinamentos. O Rio Piquiri nasce quase na divisa de Mato
Grosso com Goiás, lá pelas bandas do Alto Araguaia,
na região das furnas escarpadas do Planalto Central,
a noroeste da Furna do Mutum, onde nasce o Rio Taquari.
De muito, muito distante vieram esses sedimentos, e cada camada
tem sua peculiaridade. Seus fósseis minúsculos
contam a história dos tempos, e por essa e outras análises
acredita-se que a planície do pantanal tenha se formado
nas últimas fases do período quaternário.
Bem, amigos, como sempre, essa é uma outra história...
Havíamos passado pela equipe do Machadinho&Patrick,
que por sinal saíram umas 2 horas antes de nós
para aproveitarem bastante o dia de pesca. As fisionomias
dos companheiros não estavam muito animadoras. Acreditamos,
eu e companheiros, que eles ainda não tinham achado
o cardume procurado.
Fiquei surpreso como o pai e o filho combinam tão bem
em uma pescaria. Saiba, amigo Machadinho, é um grande
privilégio ter um filho companheiro como você
tem, parabéns!
O Gustão fazendo toda sua preparação,
muito apropriada, para se proteger do sol. Está engajado
na campanha contra o câncer de pele, certíssimo.
No primeiro dia, fomos subindo o Piquiri em busca do corixo
dos Tucunarés por indicação do Padilha.
Não tínhamos certeza de onde exatamente ficava,
assim, achar o lugar dos tucunarés foi uma aventura
a mais.
Na segunda fotografia vem a equipe do Machadinho nos passando
velozmente, em busca de novos poços de pesca. O Machado
é um pescador refinado, só gosta de pescar com
categoria e peixes de gabarito: dourados, pintados, cacharas,
caranhas. Nesta imagem dá para se ver como estava ótima
a água do rio, e que nas barrancas era uma mata fechada
para todos os lados em que se olhava.
Cenas como esta, de um barco com os companheiros cortando
as águas de um rio, em uma manhã de céu
limpo, com o peito cheio de esperança, não se
apagam jamais de nossa mente.
É a pura aventura na intimidade remota do grande Pantanal.
Como estávamos navegando por caminhos
desconhecidos, o GPS é sempre um companheiro indispensável,
pois se ficarmos perdidos em algum corixo, ou alguma baía,
basta acionar o “Track Back” que se volta no rastro, para
o lugar de onde saímos. É uma segurança
indispensável nas aventuras atuais, pois queremos sempre
ir mais longe e em lugares desconhecidos, mas, sem ficarmos
perdidos nesta imensidão de águas e corixos.
No trajeto até o corixo dos Tucunarés vimos
inúmeras capivaras, algumas ariranhas e muitos pássaros,
sendo alguns já extintos em nossas regiões,
como o jacu, a jacutinga e o mutum.
O GPS está na escala onde cada 1cm na tela equivale
a 500m, o traçado em curva são as curvas do
Rio e o pequeno triângulo simboliza o nosso barco. A
linha pontilhada é a divisa dos Estados do Mato Grosso
com o Mato Grosso do Sul. O 34,7km/h é a velocidade
da canoa.
A mata galeria do Piquiri é muito
densa e bem preservada, mas a imponência desta piuva
eu não poderia deixar de fotografar, pois ela sobressaia
soberba entre as outras. É realmente uma árvore
majestática. Não sei como os homens a perdoaram!
Uma tora deste Ipê vale uma fortuna...
Deus deve ter colocado a mão sobre ele e, assim, o
perdoaram. Segundo Marechal Rondon, as piuvas, as aroeiras
e outras madeiras de lei, eram muito abundantes na região,
mas os homens derrubaram praticamente todas.
As linhas telegráficas que o Marechal Rondon heroicamente
construiu, partindo do Rio de Janeiro para toda a imensidão
deste Brasil-sertão, representam um dos atos mais patrióticos
feitos por um brasileiro, para que a integração
do país se realizasse. Eis as principais cidades por
onde as linhas telegráficas passaram: Saíram
pela Noroeste até Três Lagoas, passando pelo
sertão do noroeste paulista, cortando matas virgens
e novos cafezais; pelo planalto central até Ribas do
Rio Pardo, Entroncamento, Rio Brilhante, Ivinhema, Maracaju,
Porto Murtinho, Ponta Porá, Porto Manga, Corumbá,
Porto Jofre, Cáceres, Cuibá e pela Amazônia
afora, todos os postes foram feitos de aroeira e em todos
tinha uma para-raio. Duraram até que as queimadas feitas
pelos homens os destruíssem. Mesmo hoje, nos varjões,
que o fogo não consumiu, existem postes, fincados pelo
Marechal Rondon, como na região dos campos dos araxás
de Ponta-Porã, Sara-Puitã, Maracajú,
Rio Brilhante e Aquidauana.
Nossa viagem rio acima continuava cheia de visões maravilhosas,
com uma surpresa em cada curva, uma visão a ser fixada
na mente. Ou na memória do GPS, para um dia podermos
voltar...
Nesta fotografia vemos um grande representante
dos jacarés do Pantanal, sempre famintos, sempre em
busca de peixes. A uns 20km da barra do São Lourenço
existe esta pousada, ela é bem grande, com muitas dependências,
mas estava com um aspecto de abandonada. Depois desta pousada,
a uns 3 km, o Piquiri se divide em dois, criando uma longa
ilha. Deve-se pegar o lado direito, pois o esquerdo se ramifica
em inúmeros braços, tornando muito difícil
o navegar.
As famosas TAIAMÃS ou Corta-mares:
São andorinhões que migram das altas latitudes
setentrionais, como norte do Canadá e Groelândia,
fazendo cruzeiros de mais de 17.000km para virem se reproduzir
nas praias do Pantanal. Têm a parte do bico inferior
maior que a superior, voam rente à água com
a parte inferior do bico riscando a superfície. Quando
um incauto peixinho sobe à tona elas somente têm
o trabalho de fecharem o bico e a comida está no papo!
São aves maravilhosas voam a uma velocidade incrível
e não é necessário dizer que são
exímias navegadoras. É triste dizer, mas tem
pantaneiros ignorantes que, desprezando o esforço destas
heróicas aves, vão às praias onde elas
têm seus ninhos para fazer a colheita de seus ovos.
É realmente um crime, um desrespeito à natureza.
No trajeto paramos numerosas vezes para apreciarmos
as belezas do Pantanal nesta região.
Com isso fomos nos atrasando um pouco e encontramos novamente
o Machado&Patrick em uma bela praia. Não soube
interpretar o que o Patrick estava fazendo na água
neste momento empurrando o barco.
Logo mais adiante de onde os amigos estavam parados, em uma
praia, estavam várias capivaras. O Chico desligou o
motor e foi lentamente andando com o barco e estas duas capivaras,
sem o menor medo, foram nos acompanhando, até pularam
dentro d`água.
CORIXO DOS TUCUNARES
E DAS ONÇAS.
Indescritíveis são as belezas
e a riqueza da fauna e da flora neste corixo. A água
quase transparente refletia, de forma quase artística,
a mata de árvores majestosas que balizavam as mansas
águas, que, à pequena velocidade de 1 a 2km/h
deslizavam suavemente pelo leito do rio, acariciando as sombras
e delimitando as margens sombrias dentro da mata.
Desligamos o motor de popa logo no início do corixo.
O silêncio era quebrado, apenas pelas ondas levantadas
pelo barco que ainda teimava em agitar aquelas águas
serenas.
Depois de uns 15 minutos de completo silêncio, a mata
criou vida: era uma miríade de sons que nossos ouvidos,
ainda machucados pelo ronco de mais de hora dos 30HP do Suzuki,
não conseguiam distinguir a origem. Inicialmente comecei
o som alto e claro de um Jaó, que de forma onomatopéica
repetia “eu sou jaóóóó!”. Segundo
os entendidos seu pio somente tem 4 notas musicais, portanto,
um caçador, com um pio artificial, facilmente consegue
imitá-los e atraí-los em uma caçada.
Como sua carne é de excelente qualidade, não
é de se espantar que em toda a Mata Atlântica
de nosso Estado eles tenham sido completamente extintos.
Nosso ouvido foi se acostumando aos sons sutis da mata. E,
a cada momento novas vozes da natureza eram identificadas,
principalmente pelo Chico, que sempre viveu no Pantanal.
Em um determinado momento, ele ficou sério e quieto,
dizendo:
-Vocês ouviram a onça?
- Não, não ouvimos nada!
Silêncio na mata, até que um casal de araras
barulhentas passou sobre nós.
Iniciamos a pescaria.
Logo depois de alguns arremessos com as iscas artificiais,
eu, com uma araçatubinha, peguei o primeiro tucunaré.
Em seguida o Gustão “ferrou” outro e o Chico também.
Havíamos encontrado um cardume de famintos e agressivos
tucunarés. Realmente é muito emocionante e saudável
este tipo de pescaria. Em um lugar como aquele, podemos atingir
o máximo do prazer com a pesca esportiva.
A água limpa permite ver o peixe parado à espera
de sua presa; então, arremessa-se a isca artificial
bem à sua frente, recolhendo-a em seguida com pequenos
puxões, dando ao tucunaré a impressão
de estar diante de uma presa fácil de ser comida. Seduzido,
o peixe investe impetuosamente sobre ela, mas ao perceber
que está preso, descarrega toda sua agressividade,
desenvolvendo uma força muito além da possibilidade
de um
peixe de seu porte. A luta que se segue é fascinante,
pois exige força, destreza e bons recursos (linha apropriada,
carretilha, etc) para impedir que o peixe arrebente a linha
ou a enrosque em alguma galhada, fugindo do nosso alcance.
Convém dizer que devolvemos ao rio os peixes médios
e pequenos, ficamos somente com os grandes, destinados à
nossa alimentação do dia, pois nosso objetivo
é a pesca esportiva, que não agride nem desrespeita
a natureza. Enquanto isso, o Chico insistia:
--Escuta, dizia ele, emocionado. É a onça mesmo.
Vocês não ouviram?
Francamente, nem eu nem o Gustão tínhamos ouvido
nada diferente, apesar da infinidade de sons da floresta.
Eram mais ou menos 11:00h da manhã, já havíamos
percorrido uns 4 km de corixo, quando o Chico se arrepiou
e nos pediu silêncio novamente.
--Vocês não estão ouvindo nada? Perguntou
sussurrando. --Não, respondi.
--Prestem atenção, tem onça esturrando
e miando aí dentro do mato.
Com o ouvido mais apurado, e em completo silêncio, deixamos
a canoa deslizar lentamente à 1km/h pelo corixo para
dentro da mata.
Ouvi um barulho à minha direita e virei-me rapidamente:
era um bando de mutuns caminhando por entre as folhas. Acredito
que o mutum seja, entre todas as aves galiformes cracídeas
do Brasil, a maior e a mais bela. O macho, no meio das fêmeas,
salienta-se pelas suas cores maravilhosas: asas pretas como
as das fêmeas, mas o
corpo é de um carijó dourado que o torna de
uma imponência sem explicações.
Fiz sinal para o Chico, mas ele se negou: não, não
eram as aves que haviam aguçado seus sentidos.
Passado um pouco de tempo, depois que os mutuns sumiram entre
as árvores, eu ouvi, o que o Chico já havia
ouvido.
Lá das profundezas da mata, um som cavernoso, gutural,
que parecia contornar as sombras e caminhar com elas até
vibrar em nossos tímpanos. Era o verdadeiro esturro
de uma onça pintada no sertão do Piquiri! Eu
e Gustão nos arrepiamos, somente o leve barulho do
remo com que o Chico mantinha o barco no meio do corixo diferenciava-se
dos sons dos pássaros, do assovio longo e fino do bando
de mutuns, do barulhento de papagaios que passou, e de numerosos
outros sons.
Timidamente, e agora com respeito, recomeçamos a pesca.
Parecia que, da mata, havia olhos a nos observar...E realmente
havia! O Chico estendeu o braço, e com a voz emocionada,
disse:
--Olhe lá a bitela, e seu braço esticou para
frente e a estibordo do barco.
Em uma pequena praia, a uns 100m de nós,
estava uma pacata onça lambendo a pata, com uma serenidade
tão contagiante, que não chegamos a sentir nenhum
medo. Eu, sem tirar os olhos dela, comecei a procurar a máquina
fotográfica em minha mochila. Que dificuldade para
achá-la! Peguei a máquina e liguei, receando
que aquele belíssimo animal se assustasse e sumisse
na mata, impedindo-me de fotografá-lo.
Nesse tempo todo, a canoa continuou descendo pelo corixo;
quando realmente levei a câmara em posição,
estávamos a menos de 50m da enorme onça. Ela
não se abalou nem um pouco com nossa presença,
manteve sua atitude de rainha do Pantanal.
O Chico, com sua calma característica,
foi pilotando serenamente o barco para o lado da praia onde
estava o majestoso felino.
Eu estava apenas olhando na tela de cristal
da máquina digital Mavica. Uma máquina fotográfica,
tão modesta e tirando tantas fotografias...
Esta fotografia foi a mais próxima
que tiramos dela. Era um animal maravilhoso, que depois descobrimos
ser uma fêmea e estava calma daquela maneira por estar
no cio, além de estar muito bem guardada por, no mínimo,
3 grandes canguçus. O Chico segurou a canoa no remo
um bom tempo, enquanto nós observávamos o animal.
Depois de um tempo ela levantou e deu um
pequeno rosnado. Chico, lentamente, foi conduzindo o barco
para longe. Ela não andou muito, na primeira sombra
deitou-se novamente, e imponente, ficou observando nossa partida.
Estava na hora do almoço - 12:30:
Depois de uns 200m, o Chico ligou o motor e subimos o corixo
uns 2 km, onde encontramos uma frondosa árvore que
propiciava uma sombra bem convidativa para um belo almoço.
O barco foi imbicado em uma praia. Abrimos nossa marmita,
apreciando o convidativo cardápio: Arroz, farofa, feijão,
lingüiça frita com molho e dois ovos fritos.
Eu e o Gustão logo começamos
a comer. O Chico não. Ficou, como se diz, com as “orelhas
em pé”. Levantou-se e caminhou calmamente pela areia
branca da praia.
Olhou bem para o chão, mediu passos e voltou rapidinho,
sorrateiro.
--Vamos, vamos, que tem um canguçu por aqui e está
bem perto! O rastro dele está bem fresquinho ali na
areia, ainda está minando água dentro deles...
Rapidamente levou o barco para bem longe do barranco e amarramos
a canoa nos últimos galhos da grande figueira que nos
fazia sombra.
Na segunda fotografia vemos o Chicão que voltara rapidinho,
dando a notícia para sairmos do barranco sombreado.Seguro
morreu de velho!
Aportamos no meio do corixo e comemos no
mais absoluto silêncio. Não demorou muito e ouvimos,
lá nas profundezas da mata, o som gutural de um esturro
da pintadona. Pela fotografia dá para perceber que
o Gustão até parou de comer. Acho que ele estava,
ou melhor, estávamos com medo de virarmos o almoço
da onça. O som era tão grave e gutural que parecia
ter corpo, parecia vir mexendo folhas, criando uma leve brisa
do interior da mata para o rio. Chico logo diagnosticou: tem
mais de um canguçu atrás daquela onça!
Ela deve estar no cio, para ficar tão calma e confiante
como a vimos.
Passados uns 15 ou 20 minutos, ouvimos outro esturro na outra
margem do corixo. É incrível, mas estávamos
assistindo a uma luta de acasalamento de uma onça pintada
nas matas do Piquiri.
Saboreamos o almoço com a emoção de estarmos
vivendo um momento extraordinário de nossa estada.
Talvez, ou melhor, e com certeza nunca mais tenhamos essa
oportunidade.
Bem, depois de uma pequena pausa, tocamos o motor uns 3km
corixo acima, para voltarmos pescando mais um pouco.
A pescaria foi ótima! Nos pontos dos cardumes, era
uma festa. Muitas vezes pegávamos mais de 3 tucunarés,
isto é, eu, Gustão e o Chico.
Os tucunarés estavam brigando tanto que cheguei a quebrar
uma varinha especial, comprada em uma exposição
em São Paulo por $570, 00. Não gostei nada do
fato, mas tinha certeza de que ela seria trocada pelo vendedor.
Bem ao fundo da fotografia está o
lugar onde havíamos visto a onça. Será
que ela ainda estaria por lá?
Paramos de pescar, enquanto o Chico rodava a canoa lentamente,
bem no meio do corixo. Francamente, estávamos muito
emocionados. Eu, particularmente, achava que ela não
estaria mais por lá, porém...
A canoa foi lentamente descendo o corixo.
Aos poucos nós fomos chegando perto de onde havíamos
visto a onça. E lá estava ela, calma como se
nada estivesse acontecendo.
Havia somente mudado um pouco de lugar, ficando mais à
frente do pequeno descampado.
Mexia o rabo e as orelhas, como se estivesse se exibindo.
E, por incrível que pareça estava mesmo!
A canoa foi chegando lentamente mais para o barranco. Aí,
sim, o Chico ficou branco e nosso coração quase
parou!
Ao nosso lado,
a uns 5 ou 10m de distância, estava o grande canguçu
de tocaia. Seu mimetismo é tão perfeito que
somente o vimos quando já estávamos quase ao
alcance de seu bote.
Segundo o Chico ele já estava com
os dentes à mostra, e se não fosse o toco à
sua frente, poderia ter nos atacado. Os músculos do
piloteiro pareciam um motor de popa silencioso, enquanto afastava
cuidadosamente a canoa do macharrão.
Ainda tive a audácia de tirar mais
uma foto, pois quando a canoa foi manobrada para se afastar,
acabei ficando numa posição ainda mais próxima
ao canguçu que, em câmara lenta e com os dentes
à mostra, aproximou-se mais da água. Cheguei
a sentir o característico cheiro do felino no ar.
Quando o barco chegou no meio do corixo,
o Chico ligou o motor e fomos embora.
Navegamos um bom tempo sem trocarmos palavras, pois as emoções
que tínhamos passado havia nos deixado muito emocionados
e pensativos. Depois de uns 15 minutos de viagem, pedi ao
Chico que parasse em uma bela praia para o Gustão tomar
uma Skol e eu, um suco. Nem bem o barco embicou na areia,
parando instantaneamente. O Chico, então, com seu sorriso
amarelo e balançando a cabeça disse:
--Passamos por uma que “não foi mole”. Para mim aquele
macharrão ia voar sobre nós.
Praticamente até aquele momento, eu e Augusto não
havíamos de forma concreta tido a real consciência
do perigo pelo qual tínhamos passado.
--Olhe, prosseguiu o Chico, já sei de muitos que foram
mortos por macharrões em idênticas situações.
Eu mesmo, lá para os lados do Paraguai-Mirim, já
tomei o carreirão de um bicho destes, e somente me
salvei porque o motor de 40HP estava ligado e eu saí
voando, nem coragem de olhar para trás eu tive. Para
mim parecia que a qualquer momento o bitelo ia abocanhar meu
pescoço. Não é mole, não! Acho
que em meus 25
anos de Pantanal nunca passei um apuro daqueles.
Aí, sim, que eu e Gustão ficamos arrepiados
mesmo. Todavia, resolvemos que no outro dia voltaríamos
lá, só que sempre no meio do corixo. A pescaria
havia sido excelente, e em bem raras vezes senti tanta emoção
assim em um mesmo dia, em minha já longa vida de aventuras.
Na descida pelo Rio Piquiri, continuamos a ver muitas aves
e animais. Incontestavelmente, é uma região
muito rica.
Estávamos descendo o Piquiri quando
encontramos o Machado&Patrick em uma pousada que existe
a uns 15 km antes da barra do Piquiri com o São Lourenço.
Um lugar muito agradável, em cujas árvores havia
numerosas e maravilhosas araras azuis. O Machado havia conseguido,
com o gerente da pousada, 100l de óleo Diesel, o que
foi muito propício pois todo combustível que
pudéssemos arranjar seria muito importante
para nosso retorno a Corumbá.
Contamos aos companheiros a história das onças
que havíamos visto, mas em virtude do cenário
que estávamos vendo no momento, da emoção
de araras voando pelos numerosos pés de cocos bacuris,
nossa aventura não deu nenhum IBOPE, como podemos dizer,
“passou batida”. O Patrick, acho que por delicadeza, disse
que depois queria ver as fotos.
Bem, isto tudo em uma aventura é normal, por isso que
procuro gravar as coisas e meditar um pouco sobre tudo que
acontece. Mais tarde com mais calma, pode-se avaliar os acontecimentos
e perpetuá-los em nossa mente.
Quem mais gostou realmente do dia, da pesca
de tucunarés e do esbarro com os macharrões
foi o Chico.
Pegaríamos quantos tucunarés quiséssemos,
mas, acho que o que retiramos da água neste dia foi
um exagero. A fisionomia do Chico mostra a felicidade que
ele estava, pois quem o conhece sabe que para ele abrir um
sorriso deste não é nada fácil.
O dia havia sido de fortes emoções.
Em todos os sentidos. Todos estavam felizes e ainda mais esperançosos
para o dia seguinte. Pescaria tem esta grande vantagem, sempre
esperamos que o próximo dia seja mais ou tão
emocionante quanto aquele que está passando.
Cada dia que passa sinto que o companheirismo com que todos
os amigos agiram nesta grande pescaria, foi exemplar. Todos
foram muito pacientes com os erros de previsão, os
meus e do comandante.
É possível que algum companheiro tenha se aborrecido
em algum momento, mas com todo garbo e calma aventura continuou
em paz.. Espero que na próxima não façamos
nada fora do “script”, para não deixar nenhum amigo
contrariado. Obrigado pela compreensão meus preclaros
amigos, e que permaneçamos sempre unidos como nesta
fotografia.
São 8:20 da manhã do dia 01-10-2003,
eu e Gustão acordamos tranqüilos, como sempre
ocorreu durante toda a grande viagem. A idade tem esta pequena
vantagem:
não sentimos mais, de forma tão dolorida, a
angustia e a ansiedade de estarmos sempre correndo atrás
dos peixes ou das aventuras, somos mais serenos e procuramos
ordenar as coisas para que elas aconteçam em seu devido
tempo.
O dia estava cinematográfico. O céu
estava coberto por uma camada descontínua de altos
estratos, e nos espaços entre as nuvens, o azul anil
da atmosfera atestava a limpidez do ar do Pantanal. O sol
nascente decompunha seus raios luminosos em um espectro de
cores, formando quadros de rara beleza, em harmonia com as
matas, com as águas, com os pássaros, amalgamando-se
com a felicidade que tínhamos por estarmos ali, participante
de toda aquela esplendorosa natureza. Estas duas fotos concretizam
esses momentos, mas sua verdadeira beleza, sua sutileza, somente
nossas almas podem reter, isto é, se tivermos a sensibilidade
necessária para vemos tudo isso que a Mãe Natureza
nos oferece.
Os companheiros Machado&Patrick já haviam partido.
Estavam atrás de peixes nobres e de grandes pescados.
Eles estão certos, pois sair de tão longe e
fazer uma viagem desta só para pescar tucunarés?...
-- Cada louco com suas manias!
Assim, lá fomos nós novamente para o corixo
dos tucunarés.
Fui muito mais tranqüilo, toda a rota até o ponto
de pesca e das onças já estava marcada em “Waiponts”
no GPS, como pode ser visto no esquema ao final do relatório.
Quantos pássaros vimos pelo trajeto! A riqueza da fauna
na região é inquestionável:
Numerosos aracuãns, que por não serem perseguidos
atualmente, tornam-se mais dóceis, permitindo até
que nos aproximemos deles para observa-los melhor.
Anhumas, em meu modesto ponto de vista são realmente
as rainhas do pantanal, pelo seu porte altivo, pelo seu olhar
atrevido e agressivo, principalmente quando nos aproximamos
de seu ninho. Por sinal, nidificam no chão, em cima
dos camalotes. Já presenciei casais de anhumas voando
sobre companheiros que chegaram muito perto de seus ninhos.
São extremamente barulhentas e espalhafatosas.
Jacutingas são aves gordas, da família das galináceas;
com seu vôo lento atravessam o rio de uma margem a outra,
como se estivessem brincando, e nesse vôo fazem uma
algazarra característica, para chamar a atenção.
Colhereiros, em pequenos bandos, com sua cor vermelha mais
pareciam enfeites colocados nas praias de areia branca, ao
longo de nosso caminho. São muito discretos:
quando a canoa se aproxima, eles levantam vôo ordenadamente,
um após o outro, em uma disciplina quase militar.
João Grande, ou Jaburus, ou Tuiuiús: São
realmente consideradas as aves símbolo do Pantanal
de Mato Grosso. Também, com seus 2m de envergadura,
não é para menos! Caminhavam lentamente durante
nossa passagem, deixando bem claro que nós os estávamos
perturbando em sua busca por alimentos. Toda branca, com a
cabeça e longo bico pretos, de longe lembra um “maître”
na porta de um restaurante.
Vendo tantas belezas, os 60 minutos de viagem, passaram despercebidamente,
enquanto cruzávamos os 33Km. Até o corixo. Na
boca do Corixo dos Tucunarés e das onças, desligamos
o motor de popa, que faz um barulho infernal, e entramos silenciosamente
pelo corixo, ao sabor da lentíssima correnteza e do
remo do Chicão.
Aos poucos, os barulhos da mata começaram a tomar conta
dos nossos ouvidos.
Os primeiros sons identificáveis foram os dos jaós,
que às dezenas, piavam pela mata.
Japuiras, construindo seus ninhos como tecelões, bem
ao rés da água, atestavam sua instintiva inteligência,
pois se algum animal vier comer seus filhotes, como macacos,
tucanos e outros, o galho do ninho enverga, entrando na água
e impossibilitando o saqueador de cumprir seu intento.
Achamos o cardume de tucunarés a uns 3km abaixo da
entrada do corixo, foi uma festa. Nossa técnica de
pesca colocada à prova, nossas emoções
indescritíveis e ainda restava chegar no domínio
das onças pintadas...
Estávamos ainda a uns 2km do lugar onde havíamos
visto as onças. Paramos a pesca e deixamos o barco
ir rodando lentamente sem nenhum barulho. Não saberia
descrever quantos ruídos, sons, cantos, a mata emite
no silêncio da travessia.
Identifiquei novamente os assovios agudos e típicos
do bando de mutuns 1 km antes da praia das onças.
Fomos chegando...Vi a praia, mas nada das pintadas! Um pouco
mais adiante, o Chico estendeu o braço para a sombra
de uma grande árvore ao lado da praia. Que espetáculo
inesquecível: no sombreado da floresta, estava um magnífico
casal de felinos! Duas pintadas maravilhosas, com certeza
o macho dominante e a fêmea
dominada... Que maravilha indescritível é a
natureza! Eram duas espécies de canguçus realmente
extraordinários, quer pelo porte, quer pela elegância
quer pela displicência com que olharam para nós.
Ficou claro que não queriam ser incomodados em sua
intimidade, pois se levantaram e desapareceram entre as árvores,
como duas sombras na escuridão. Ficamos pasmos pela
leveza e elegância com que se moveram, desaparecendo,
com seu extraordinário mimetismo, bem “debaixo de nossos
narizes”.
Ponderando e recordando:
Quando eu, Marcelo e Dr. José Merli estivemos fazendo
um safári na África, tivemos a grata oportunidade
de ver o namoro e a cópula de um casal de leões.
Eles permanecem mais ou menos dois dias juntos, se esfregando
e rosnando baixo, e depois passam horas copulando de tempos
em tempos. Findo cio da fêmea e com a certeza da fertilização,
cada um segue seu caminho. Mas o guia nos fez observar tudo
isso a grande distância para não perturbar a
intimidade dos felinos. Pelas vezes em que vi as onças
no Pantanal em condições semelhantes, acredito
que o comportamento do felino brasileiro deva ser semelhante
ao dos reis dos animais africano.
Depois deste encontro para procriação da espécie,
cada animal segue seu caminho para determinar seu território
de caça.
A fêmea tem que achar um lugar especial para se alimentar,
criar seu espaço, seu território, descobrir
uma gruta e um grande pau oco para fazer seu ninho protegido
dos muitos predadores que estão em busca de suas lindas
crias. De todos os seus inimigos, o homem ainda é o
pior. É lamentável, mas isso ainda é
um fato.
Volta do corixo com os tucunarés pegos. A tempo: acho
que ninguém acreditou que vimos as onças juntas
e se acariciando.
Não é para nos gabarmos, mas
no segundo dia demos realmente uma demonstração
da pesca esportiva ao
tucunaré: arremessos precisos na boca dos bichões;
linhas finas e varas delicadas em árdua luta com os
esportivos peixes, pulos espetaculares dos maravilhosos
exemplares pescados, dos quais a grande maioria foi solta.
Assim mesmo, dá para ver, nas fotos seguintes, a
grande quantidade de peixes que ainda trouxemos para o barco.
Realmente foi mais um dia em nossas vidas que não esqueceremos
jamais.
Ainda não recebi as fotografias do Patrick para colocar
nesse relatório, mas eles estavam também se
divertindo
muito e pegando peixes de grande categoria. Para falar verdade,
o Patrick e o grande Machadinho são muito, muito mesmo,
melhores pescadores que eu e Augusto. A única coisa
que temos muito mais que eles é a idade.
Aí estão os tucunarés
do segundo dia de pesca. Eu e Gustão estamos realizados,
mas pela fisionomia pode-se ver que também estamos
muito cansados, de tantas aventuras e arremessos para a captura
dos peixões. Arremessar o dia todo e no lugar certo
exige concentração e força. É
um belo exercício, teremos peixes para comer durante
toda a viagem de volta. O estoque está garantido.
O dia havia começado lindo e terminou
esplendoroso. À tarde as lanchas Marajós 19
do hotel do Porto Jofre estavam retornando. A água
do rio, escurecida pelas sobras das árvores à
sua margem esquerda, desenhavam dinâmicos quadros de
rara beleza quando as possantes máquinas passavam e
levantavam espumantes ondas no entardecer pantaneiro.
Depois de pouco tempo, a margem direita do
rio foi iluminada, pelos raios do sol que se refletiam na
estratosfera.Parecia que o dia ia nascer novamente.
O raiar do dia e o pôr do sol no pantanal são
muito semelhantes: somente variam as cores, pois o primeiro
tende para o vermelho e amarelo forte, e o segundo é
um caleidoscópio de matrizes que dependem muito das
condições da atmosfera. Nessa visão tudo
se tingiu de amarelo, mas é um flash de tempo, é
ver e fotografar, pois passados alguns minutos tudo muda...
É uma dinâmica ininterrupta de sons, cores, odores
e luzes.
O Pantanal é simplesmente lindo, é quase um
estado de espírito. A PARTIDA. Pelas medidas aferidas
no GPS, havíamos navegado 380km dos Rios Paraguai,
São Lourenço e Piquiri com o Shekinah. Depois
de aportados no Piquiri, navegamos para pescar com a canoa
mais uns 175km. Assim, havíamos andado pelos rios aproximadamente
555km.
E teríamos, certamente, os 380Km de volta a Corumbá.
Estava preocupado com a volta por vários motivos:
O combustível: não tínhamos óleo
diesel suficiente, para voltarmos dentro das normas de segurança
da marinha.
As condições meteorológicas: o tempo
estava instável em vários pontos de nossa rota.
O barco: o Shekinah nunca havia feito uma viagem tão
longa sem manutenções preventivas.
Somente eu e Chico tínhamos estas preocupações
em nossa mente. Mas, confiantes como sempre, na quinta-feira,
às 06:45h da manhã, levantamos âncoras
do Rio Piquiri com destino a Corumbá.
A altitude do lugar que estávamos era de 117m pelo
GPS.
O Machadinho&Patrick saíram mais cedo com a canoa
para descer o Rio São Lourenço pescando, o que
fizeram muito bem. Eles saíram, mais ou menos, 1 hora
antes de nós, e teriam até à hora do
almoço para pescarem, pois as canoas andam praticamente
quatro vezes mais rápidas do que o barcão.
Na primeira foto, o Chico está saindo
do Piquiri com o barco e seu sorriso é de satisfação.
Não é para menos: tínhamos feito uma
ótima pescaria e visto uma onça... Bem, o caso
das onças ainda vai render histórias para todos
nós por muitos anos. Espero não aumentar muito
o número dos felinos quando for contar a história,
no futuro para meus netos...
Na segunda fotografia: Assumi o comando do Shekinah e o pilotei
até à hora do almoço. Gosto de pilotar,
pois a gente fica prestando atenção nas manobras
e não vê o tempo passar. Havia assumido o comando
bem em frente ao Porto Jofre.
O Gustão, grande companheiro, sempre chegando por perto
e batendo uma prosa importante. Somente não aceito
mais café oferecido por ele, pois o último que
ele me serviu estava “adoçado” com sal...
Felizmente o Shekinah estava muito bem, e descemos fazendo
uma média de 16km/h, que representava 6km/h a mais
do que quando subimos os rios. A diferença é
a velocidade da corrente da água, que ao final da viagem
tem grande importância para o gasto de combustível
e o tempo.
Passamos pelo Machadinho duas vezes. Eles estavam felizes,
parece que pegando uns peixes bons. Assim foi até à
hora do almoço, quando “a fome falou mais alto” e eles
nos alcançaram.
Aí, os companheiros estão em
um ótimo ponto de pesca. Foi uma pena eles terem que
parar de pescar para seguirmos viagem. Mas, infelizmente não
podemos fazer tudo que temos vontade, é a vida. O Machadinho
ficou um pouco aborrecido por eu interromper a pescaria um
dia antes do combinado, Ele estava coberto de razão,
mas, infelizmente, eu e o Chico, por mais que conversássemos,
não conseguíamos apagar da nossa mente a preocupação
com o longo retorno. Felizmente, o Machadinho, como diz o
Gustão, é verdadeiro lorde inglês e creio
que nos perdoou por esta lamentável falha...
Ancoramos o Shekinah para recolher os companheiros.
Levantamos os barcos no guincho e guardamos os motores nos
porões, com muita rapidez, graças à prática
da tripulação, pois não deixa de ser
uma série de procedimentos complicados.
Depois desta pequena parada, tivemos a satisfação
de comermos um belo almoço, cujo prato principal era
peixe na brasa. Enquanto isso, o barco continuava andando.
O Chico queria passar pela Serra do Amolar ainda com a luz
do dia, pois durante a noite as sombras da serra atrapalham
e confundem muito a navegação.
É incrível a desolação das pessoas
ribeirinhas que moram nesse estirão interminável
de rio. Andamos praticamente 100km sem encontrar ninguém:
não havia pescadores nem barcos. Creio que essa desolação
está contribuindo muito para a restauração
da fauna do Pantanal. Há males que vêm para bem...
O Machado contou-me um fato muito triste, ocorrido quando
estavam descendo de canoa à nossa frente.
“Ao chegarem em uma ilha, havia uma choupana de pescadores,
retirada menos de uma centena de metros da margem. O pirangueiro
Padilha disse que ali morava um conhecido seu, o Jóca”.
Diz o Padilha”:
--Ele é um ótimo pescador, muito alegre e sabe
sempre onde está o peixe. Se quiserem, iremos até
a casa dele para vocês o conhecerem e trocarmos uma
idéia.
Prontamente o Machado aquiesceu ao pedido. Pararam no humilde
porto, e foram caminhando para o casebre.
Diz o Machado:
--Tudo era muito triste, sujo e sem vida. Silhuetas apareceram
na mísera porta e na única janela do rancho,
mas o ambiente era estático e sombrio. O Padilha estranhou,
mas foi andando. Eu segui atrás, um pouco ressabiado.
As silhuetas se movimentaram, as da janela pareciam ser duas
ou três crianças. Mais próximo, uma senhora,
não muito velha, mas muito “acabada” e cabisbaixa,
saiu na soleira da porta. Era a mãe do Jóca.
--Padilha, foi dizendo alto, uma está o Jóca,
dona?
Ela não respondeu. Fomos nos aproximando, e já
bem perto pude avaliar a figura de amargura e sofrimento da
senhora.
--Você não soube, não?
--O quê, dona Maria, disse o Padilha.
--Faz uns 15 dias, o Jóca se arrumou todo, pôs
sua melhor roupa e foi em um terço, que ia ser rezado
lá nos Carandá. Soluçando, repetia: não
voltou mais...
Depois de 2 dias acharam a canoa, mas nada do meu filho. Somente
uma semana depois encontraram o corpo. Agora, estou aqui sozinha,
mais as crianças para criar, é muito triste...
“A desolação era tanta, segundo o Machado, que
ele sentiu o chão fugir sob seus pés.
Ele e Padilha nada podiam fazer. Cabisbaixos e reverentes,
demonstraram seus sentimentos e se retiraram. Segundo o Machadinho,
ele não se lembra de uma dor maior”.
Somente em Ribeirão Preto, Machadinho contou-me esse
triste acontecimento.
Horas e horas depois, bem perto do Rio Paraguai,
encontramos este barco de pescadores profissionais. Havia
no barco famílias interias, inclusive com muitas crianças.
O Padilha disse que eram pescadores saindo da reserva do Carcará.
Realmente o grande problema do Brasil é esta constrangedora
diferença entre as várias camadas da sociedade.
Pode-se imaginar a vida destes homens, mulheres e crianças
em uma paupérrima embarcação como esta?
Os guardas toleram uma certa pesca predatória para
a miserável sobrevivência deles, mas e o futuro?
Como será a velhice destes pescadores e a existência
destas crianças: os meninos talvez caiam na marginalidade
nas grandes cidades e as meninas, na prostituição!
É muito triste pensar
em tudo isso e ser impotente para fazer qualquer coisa de
concreta. Resta-nos cumprir nossa parte com honestidade e
rezar para que os governantes parem de roubar despudoradamente
e comecem a gerir melhor a vida do povo deste imenso e riquíssimo
país.
CHEGANDO NA FOZ DO SÃO LOURENÇO
COM O PARAGUAI.
Chegamos às 17:45h, foram 11 horas de viagem para percorrer
160km, sem computar neste tempo, as paradas técnicas.
Foi com bastante emoção que vimos ao longe a
Serra do Amolar. Tínhamos passado pelo Carcará,
onde a paisagem estava muito linda. Logo passamos pelo Hotel
da Mesbla e então pude notar como é grande mesmo
a construção deste hotel. Que tempos áureos
foram os anos entre 1970 a 1983, que permitia, a uma firma
como a Mesbla, construir neste longínquo paraíso
uma obra monumental como esta. Vivemos períodos ótimos
e na ocasião nem demos conta do quanto éramos
felizes, não sabíamos...
Acho que a vida é assim mesmo, somente damos valor,
àquilo que não temos ou ao que ainda almejamos,
pois o que temos torna-se um passado de antigas conquistas,
e nossa decadente filosofia não tem nos ensinado a
valorizar e preservar, com amor e entusiasmo, nossas aquisições...
Digo isso em todos os sentidos!
Isto tudo é bem evidente em nossas
viagens. Por exemplo, eu e Patrick ficamos superfelizes por
estarmos vendo a serraria do Amolar. Chegando ao Amolar, estávamos
em busca de outros portos, outros horizontes. Se a serraria
do Amolar é tão linda, por que fomos até
tão longe em busca do Piquiri? Bem, a busca, a aventura,
estão em nossos corações, queremos ir
cada dia mais, longe, queremos cada dia conhecer novos lugares,
queremos sempre viver novas histórias, pois as conquistas
passadas são o passado e tendemos a deixá-las
sempre para trás... E, buscar novos horizontes!
Quando chegamos ao Rio Paraguai parece que uma grande etapa
da viagem havia sido concluída. Senti uma emoção
bem grande ao adentrar o imponente rio. Em sua margem direita
estava a marcante morraria da Serra do Amolar, isto é,
a estibordo do Shekinah.
Em meio a uma planície, que é uma das maiores
do mundo, a aproximação de uma serra parece
mudar tudo na ecologia do lugar.
O sol encimando o alto da cordilheira prenunciava seu ocaso
por trás dos paredões abruptos da serra. O pôr
do sol por trás das montanhas era o temor do Chico,
pois seria muito importante atravessar os 15km do Amolar antes
que a luz do sol lançasse suas sombras no leito do
rio. Quando isto acontece, as sombras se confundem com a escuridão
da superfície das águas do rio, criando contrastes
que quase impossibilitam a navegação no lusco-fusco
da noite, nesse trecho perigoso do rio.
Nós, no momento, não participávamos dos
temores do comandante, pois o panorama era tão maravilhoso,
que queríamos vivenciar ao máximo estes inesquecíveis
momentos. Era tempo de sonhar, recordar, relembrando as viagens
passadas e os companheiros que aqui já não estão
mais. Temos mesmo que acreditar em uma outra vida espiritual
alem desta, pois caso contrário, um grande vazio abre-se
em nosso coração pois nossa existência
é muito efêmera, frente à grandeza de
tudo o mais...
Passei o timão para o Chico e convidei os companheiros
para subirmos na cobertura, a fim de desfrutarmos da paisagem
durante a passagem pelo Amolar.
Deus, senhor de todos os espaços, criador e força
de nossa existência, por que merecemos participar de
tanto? Não podemos nem sequer imaginar os parâmetros
e a complexa equação de nossas vidas, assim,
Senhor, somente podemos reverenciá-lo, e agradecer,
por sempre termos desfrutado de tudo de belo e sublime que
nos têm oferecido, sem nada cobrar, sem nada exigir...
Uma dádiva tão exuberante que, em nossa grande
ignorância, poucas vezes sabemos reconhecer e AGRADECER-LHE
por tanto.
A visão era maravilhosa, os raios de sol se decompunham
nos altos estratos, criando quadros de rara beleza que se
alternavam continuamente. Essa era nossa visão para
oeste, pelos lados da serraria e do pôr do sol.
Nestas fotografias vemos o sol chegando na
crista da Serra do Amolar. Na segunda fotografia, o exato
momento em que o sol se escondeu atrás da morraria.
Visões inesquecíveis de uma grande aventura.
A bombordo, isto é, para os lados da margem esquerda
do rio, era a planície pantaneira que se confundia,
à distância, com a linha do horizonte. Outro
espetacular cenário, a luz refletida nas inúmeras
baías e corixos criando uma luminosidade incrível
na atmosfera.
E, destas águas, riquíssimas em alimentos, centenas,
milhares de aves saciadas, levantavam vôo em busca de
seus pousos, seguros, na Serra do Amolar.
Era realmente emocionante ver as batuíras ou irerês,
em vôos de formação: a líder à
frente e todo o bando formando uma flecha, acompanhando o
sentido exato do deslocamento pelo púrpuro céu
das encostas da serra. Os casais de araras vermelhas também
se dirigiram, aos gritos, para a serraria. É incrível
mas as araras estão sempre aos pares.
O que mais nos chamou a atenção foi um bando
de colhereiros, que com sua plumagem vermelha e seu vôo
ondulado e sincronizado, cruzou o rio em um vôo baixo,
quase roçando a água. Eram tão combinados
que, à medida que se distanciavam, pareciam ser uma
só ave, imensa, a cruzar o espaço. Misteriosamente,
desapareceram em uma curva do rio.
Pródiga natureza esta, que se expõe de forma
tão exuberante, para em seguida se ocultar nas sombras,
com novos capítulos e novas visões. Tantas aves,
tantos vôos, que depois se diluem no espaço.
Não é sem razão que os Egípcios
acreditavam que Íbis, sua ave sagrada, fosse capaz
de ir de um mundo a outro, pois ao pôr do sol elas simplesmente
sumiam das margens do Rio Nilo, e ninguém sabia para
onde elas iam.
Felizmente quando o sol atingiu a crista da morraria já
estávamos nos Novos Dourados, portanto praticamente
fora da morraria do Amolar.
O Chicão, mais uma vez, tinha razão, pois quando
o sol ficou atrás das montanhas as sombras que se projetaram
na superfície do rio, confundiram todo o espaço
que nos cercava. Nessa hora perde-se os parâmetros,
e às vezes, a mata-galeria parece subir no espaço,
enquanto, na escuridão, o rio desenhe curvas que simplesmente
não existem. Somente um comandante que conhece o rio
de cor é capaz de navegar durante o lusco fusco, pois
sabe exatamente para onde o rio está correndo.
Iríamos navegar a noite toda, para chegarmos a Corumbá
no outro dia pela manhã. Aproveitamos a claridade restante
do poente para jantarmos. O Roberto serviu um soberbo filé
de pintado com alcaparras, arroz à grega e salada,
o jantar da despedida foi à altura da comitiva muito
bom.
O Gustão e Machado fartaram-se com uísque e
com o bom vinho do Machadinho.
Depois do jantar subimos novamente na cobertura para vermos
as estrelas. Vênus, esplendorosa, despontava no oriente
como um farol entre as estrelas. Curiangos e morcegos insetívoros,
em ziguezague, capturavam os milhões de insetos que
voavam sobre a água. O Shekinah ia sereno, cortando
o mar de águas do grande Rio Paraguai.
Todos foram ficando com sono e procuravam se recolher. Eu
havia visto relâmpagos e raios cortando o espaço
a bombordo de nosso barco. Calculei que estariam a uns 20km
de distância. Era um CB (cúmulos nimbos) de grande
tamanho. Seu topo deveria estar a mais de 15.000m de altura,
e os relâmpagos desciam como cascatas de fogo de seu
cume de gelo. Como sempre, é um grande espetáculo
e uma grande preocupação, pois nossa rota e
seu deslocamento, de Este para Oeste, tinham grande chance
de se cruzarem.
Desci e alertei o Chico e o Padilha. O Gustão estava
deitado no sofá e quis saber o que estava acontecendo.
Contei, ele ficou quieto. Pelos meus cálculos, estávamos
à 1:30h do cruzamento com a tempestade.
Pedi ao Chico que chamasse, pelo rádio algum companheiro
que estivesse Águas Acima, na região do Coqueiro,
para saber das condições meteorológicas.
Silêncio total!
Nos 30 a 40km que nosso fraco rádio alcançava
não havia nenhum barco navegando na escuta. Tornamos
a chamar algumas vezes, inutilmente. O jeito era tocar para
frente e manter os olhos no tempo.
O Shekinah estava soberbo, navegando a mais de 18 horas sem
uma falha, sem uma tremida, muito bom, bom mesmo. O Chico
e o Du estão de parabéns!
Coloquei um banco na proa do barco e fiquei
fazendo companhia para o Chico.
Infelizmente, o CB, estava cada vez mais perto, e em nossa
rota de navegação, cruzálo seria inevitável!
Aos 30 minutos do novo dia, encontramos o monstro. O vento
soprava violentamente, com mais de 40 nós. A navegação
não estava fácil, mas quando a chuva e o vento
chegaram juntas não tivemos outra opção
a não ser ancorar em uma grande árvore a bombordo,
procurando abrigo, pois o vendaval que se anunciava não
seria brincadeira. É muito arriscado cruzar um CB com
uma embarcação ou uma aeronave. Nos grande navios
e jatos eles dispõem de radares meteorológicos,
justamente com o objetivo de rastrearem os cúmulos
nimbos, no mar ou no espaço.
Depois de bem amarrado o barco, toda a tripulação
foi, rapidinho, dormir. Eu deitei também. Fiquei ouvindo
a tempestade urrar lá fora. Sabendo que não
corremos perigo nenhum, é emocionante estar no meio
de um temporal deste quilate. Depois de 1 h ele foi passando,
e após 15 minutos de trégua, subi na cobertura
para analisar o tempo. O CB ia rugindo para oeste, e no céu
as estrelas já apareciam. A atmosfera, perfeitamente
limpa pela chuvarada, parecia trazer o firmamento ao alcance
de nossas mãos na escuridão da noite. Como são
incríveis as abruptas mudanças da natureza:
somente Ele, com sua suprema sabedoria, poderia comandar tão
complexos acontecimentos.
Chamei o Chico e o Padilha.
--Companheiros, o mau tempo já se foi, soltem as amarras
e liguem as máquinas.
Temos ainda 160Km de rio para chegarmos a Corumbá.
Eles foram rápidos! Em menos de 10 minutos estávamos
navegando calmamente e agora auxiliados pela luminosidade
do espaço sideral, lindo, muito lindo! Um ambiente
inesquecível, das silhuetas da mata galeria balizando
o deslocamento da embarcação.
Fiquei ali mais uma hora com eles. Às 3:00h fui deitar,
na tentativa de dormir um pouco.
Felizmente, dormi até às 6:30h.
Conforme o previsto, o Shekinah navegou a noite toda, e com
o Chico e Padilha revezando-se chegamos no posto de abastecimento
do porto às 7:30. Tirando as paradas, gastamos aproximadamente
vinte e quatro horas para a volta, ou seja, quatorze horas
a menos do que havíamos gasto na subida até
o Piquiri. Esta diferença,
em primeiro lugar deve-se à correnteza dos rios, e
em segundo, ao peso da embarcação, pois na subida
tínhamos quase 2.000kg a mais de carga.
Eu e comandante Chico no último por
do sol da grande aventura. A Serra do Amolar já está
a mais de 10km. Tínhamos passado o estreito do Amolar,
estávamos fora de perigo. A luz do sol poente vai se
decompondo nos altos estratos da atmosfera. Como eu disse,
era um espetáculo de luzes, sombras e escuridão.
A água do rio, como um espelho, duplicava as imagens,
como se pode confirmar pela fotografia:
tudo o que se vê em cima é refletido em baixo.
Esse fenômeno que, durante o lusco-fusco, dificulta
sobremaneira a navegação, pois pesando ser o
rio pode-se entrar “de cara” em uma barranqueira, o que causaria
um desastre de proporções inimagináveis.
Este é o quadro que fica em minha
mente do final desta grande viagem.
Chegado no Porto do
Hotel Gold Fish, nosso destino.
Aí está o heróico Shekinah,
que havia completado uma viagem de 60horas e 20 minutos. Eu,
somando os deslocamentos na canoa, percorri, pelo GPS, 987km
de rios. Estou ao lado do Roberto, nosso prezado cozinheiro,
que se portou muito bem durante toda a viagem.
Saímos com as caminhonetes às
12:15h; tínhamos pela frente 1240km até Ribeirão
Preto.
ESQUEMA DO GPS, DA
SEGUNDA PARTE DE NOSSA GRANDE AVENTURA.
Estes são os
esquemas da viagem traçados pelo GPS nos mínimos
detalhes das curvas dos rios navegados.
Foto recordação
da grande viagem realizada, uma recordação para
sempre, de belezas, companheirismo e aventuras.